Resumo: | O objeto de análise deste trabalho tem como ponto de partida o julgamento pelo
Supremo Tribunal Federal da Reclamação 11.243, na qual a reclamante foi a República
da Itália e o reclamado foi o Presidente da República, tendo em vista a negativa do
Chefe de Estado em entregar o extraditando Cesare Battisti. A controvérsia surgiu, uma
vez que o Supremo Tribunal Federal manifestou-se de maneira favorável na Extradição
1.085 à entrega do nacional italiano, tendo em vista a regularidade do processo
extradicional. Dessa forma, o presente trabalho tem o intuito de trazer para a discussão
os limites da atuação da jurisdição constitucional para julgar decisões tomadas pelo
Presidente da República no uso de suas atribuições, especialmente em uma decisão que
envolve questões de política internacional.
Para realizar esta análise, no capítulo um haverá a apresentação do
julgamento da Reclamação 11.243 do STF movida pela República italiana contra o ato
do Presidente da República de não extraditar o nacional italiano Cesare Battisti – após a
decisão do STF na Extradição 1.085 que deferiu o pedido formulado pelo Governo da
Itália. A ênfase será aos pontos mais polêmicos debatidos entre os Ministros que
abrange as fases do processo extradicional – e a como deve ser a atuação do Chefe do
Poder Executivo – a vinculação do Presidente da República à decisão do STF e a
insindicabilidade do ato presidencial.
No capítulo dois o objetivo será o estudo do debate travado entre Kelsen
e Schmitt a respeito do legítimo “guardião da constituição”, que representa o início do
controle de constitucionalidade na Europa. Tal escolha deve-se ao modelo de jurisdição
constitucional defendido por Kelsen assemelhar-se, ao menos em termos formais, ao
adotado por muitos sistemas atuais, dentre eles o ordenamento jurídico brasileiro. No
entanto, o modelo kelseniano dava à Constituição status de norma jurídica, responsável
por “[...] disciplinar o processo de criação do direito e, por extensão, de organizar o
Estado. O modelo de Kelsen não pretendia impor limites materiais relevantes ao
exercício do poder político [...]” (MENDONÇA, 2009, 227).
Em contrapartida, enquanto na Áustria a Constituição possuía força
normativa, tendo em vista o tratamento dado a ela como norma jurídica, as demais
Cartas Constitucionais eram tratadas como documentos políticos, sem força normativa.
Esse constitucionalismo tem sua origem na:
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[...] revolução francesa, cuja grande preocupação era derrotar um poder
autocrático e afirmar a soberania nacional, entregando-a à custódia de um
legislador idealizado. Ao atingir esse objetivo, os revolucionários verteram os
valores jusnaturalistas, que haviam inspirado a revolução, em normas
legisladas, cuja interpretação pelos juízes deveria ser estrita, já que estes não
eram associados à redenção, mas sim ao absolutismo deposto.
Paradoxalmente, o suposto auge do jusnaturalismo abriu caminho para a sua
superação pelo positivismo jurídico, que se tornaria a forma dominante de
explicar o fenômeno jurídico, até a segunda metade do século XX
(MENDONÇA, 2009, 227).
O positivismo jurídico, após a experiência dos regimes totalitaristas, tem
abalada sua pretensa neutralidade moral, sendo demonstrada a insuficiência da
identificação entre legalidade e legitimidade. Nesse sentido, a Constituição passa a ter a
função de resguardar valores fundamentais, que tinham como cerne limitar o poder que
poderia ser utilizado pela maioria contra aqueles valores da sociedade, sendo assim, as
Constituições passam a ter forma normativa, não sendo mais apenas uma carta política.
Nesse contexto é que a jurisdição constitucional passa a ser considerada mecanismo
viável para controlar possíveis abusos do governo ou das maiorias, e esse mecanismo já
havia sido defendido por Kelsen em sua obra.
A escolha das obras de Kelsen e Schmitt para realizar tal estudo deve-se
ao importante debate realizado por esses dois autores, a respeito de qual órgão estatal
era o legítimo guardião da Constituição, e assim, teria legitimidade para “controlar” os
atos estatais dos outros poderes. Ademais, o estudo desses autores permite concluir que
Kelsen, em certa medida subestimou a possibilidade de ingresso da política no direito,
apesar de reconhecer a existência de um espaço político no processo de criação do
direito. De outra maneira, Schmitt ampliou a capacidade de influência da política no
direito.
No terceiro capítulo, por meio do estudo de alguns temas importantes
para realizar a análise crítica da decisão do STF na Reclamação 11.243, de acordo com
a Teoria dos Sistemas será possível entender como se dá a diferenciação entre direito e
política nas atuais formas estatais, denominadas de Estado Democrático de Direito. Para
isso será apresentada como ocorre a compreensão da Constituição, a partir da
conformação dos códigos preferenciais dos sistemas jurídico e político, a diferenciação
e aproximação deles, e nesse contexto, será discutida a configuração e a importância da
soberania no Estado Democrático de Direito.
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Munidos desses elementos teóricos será realizada um análise crítica da
decisão do Supremo Tribunal Federal que legitimou o ato do Presidente da República,
comentando os principais elementos utilizados pelos Ministros da Corte, tanto os
favoráveis ao ato presidencial, bem como os contrários, que possuem relação com o
debate entre direito e política, bem como com o Estado Democrático de Direito. Esses
elementos versam basicamente sobre a noção de separação de poderes, a necessidade de
obediência pelo Presidente aos termos do Tratado Internacional, a insindicabilidade do
ato presidencial e a noção de soberania nacional.
O estudo da estruturação da jurisdição constitucional no jovem Estado
Democrático brasileiro permite concluirmos que com a expansão do Poder Judiciário e
da jurisdição constitucional em assuntos reservados tipicamente ao poder legislativo e
executivo deve-se a vários fatores. O primeiro deve-se ao momento em que a atividade
tipicamente política encontra-se enfraquecida, principalmente, por causa da atuação
ineficaz dos membros desse poder. O segundo é a importância cada vez maior dada a
um Poder Judiciário forte e independente. E por último é a utilização pelos membros
políticos do judiciário como última instância de questões políticas, como forma de
evitar o desgaste de imagem com os seus eleitores.
A judicialização da política no Brasil decorre não por uma vontade do
judiciário, mas pela conformação do ordenamento jurídico brasileiro, isso porque, a
Constituição analítica somado ao sistema misto de controle de constitucionalidade
acaba por permitir que o Supremo Tribunal Federal analise um grande número de
assuntos políticos, pois não podem negar a prestação jurisdicional quando provocado.
Apesar de Dieter Grimm afirmar que a jurisdição constitucional não ser
indispensável para a existência do constitucionalismo democrático, ela é:
[...] um espaço de legitimação discursiva ou argumentativa das decisões
políticas que coexiste com a legitimação majoritária, sevindo-lhe de
‘contraponto e complemento’. Isso se torna especialmente verdadeiro em
países de redemocratização mais recente como o Brasil, onde o
amadurecimento institucional ainda se encontra em curso, enfrentando uma
tradição de hegemonia do Executivo e uma persistente fragilidade do sistema
representativo (BARROSO, 2009, p. 18)
Ademais, nas democracias constitucionais, em que há uma preocupação
de obediência simultânea dos princípios democráticos, bem como os decorrentes do
constitucionalismo, na busca pelo cumprimento desses princípios a constituição acaba
sendo a parte mais fraca, e a jurisdição constitucional busca fortalecê-la. Assim, para
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Grimm (2009) o equilíbrio entre essa relação depende da atuação dos juízes, o que torna
precária essa estabilidade. Apesar disso:
Em sociedades onde a democracia constitucional é uma nova conquista e
onde as pré-condições ao governo democrático são subdesenvolvidas, ou
ainda Estados onde a constituição por um longo período não importava, os
agentes estatais podem não observá-la sem correr o risco de perder
legitimidade pela população, será mais difícil renunciar à jurisdição
constitucional do que para aqueles estados que têm uma longa e estável
tradição democrática e um respeito generalizado pela lei. Nos primeiros, a
constituição irá necessitar de um órgão independente cuja principal meta é
garantir a obediência para com as suas normas, o que então a torna visível e
significa para o público. Isso pode explicar por que tantos países que apenas
recentemente se tornaram democráticos optaram pela jurisdição
constitucional (GRIMM, 2009, p. 21).
Outro aspecto que ressalta a importância da jurisdição constitucional para
a democracia é o seu distanciamento da sociedade, por seus membros não terem que
prestar contas sobre suas decisões, no que diz respeito a uma necessidade de
popularidade, tendo em vista que não se submetem a eleições. Assim, a corte
constitucional tem a possibilidade de insistir no respeito aos princípios norteadores da
sociedade em que está inserida a Constituição, de modo a demonstrar aos políticos quais
são as obrigações constitucionais que eles devem obedecer e se submeter.
Nesse cotejo, esse trabalho não teve a intenção de deslegitimar a atuação
do Supremo Tribunal Federal em matéria decisões políticas, pois como foi dito, ele
exerce uma importante função na consolidação da democracia no Brasil, contendo a
atuação tanto do poder executivo como do legislativo, de acordo com os preceitos
constitucionais, ou seja, com a vontade soberana do povo. Mas, o Supremo Tribunal
Federal no caso da Reclamação 11.243, na qual entendeu que o Presidente da República
seguiu o que estava previsto no Tratado Internacional, obedecendo o princípio da
legalidade, não cabe à Corte avaliar os motivos subjetivos – como fez o Ministro Gilmar
Mendes – no caso, a existência de motivos ponderáveis de agravamento da condição
pessoal do extraditando, sob pena de extrapolar sua competência e substituir o Chefe de
Estado em suas decisões concernentes às relações internacionais.
Tal entendimento é corroborado pela compreensão de que apesar de o
direito não oferecer soluções pré-acabadas, a decisão dos juízes possuem certos limites
a serem respeitados, de modo a conter de maneira parcial o exercício de suas escolhas.
Apesar da independência das cortes para realizarem suas decisões, no que tange aos
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elementos eletivos – típicos de uma democracia – alguns fatores influenciam a atuação
dos juízes. Assim, mesmo que o sistema jurídico esteja acoplado ao político:
[...] o direito pode e deve ter uma vigorosa pretensão de autonomia em
relação à política. Isso é essencial para a subsistência do conceito de Estado
de direito e para a confiança da sociedade nas instituições judiciais. [...] o
direito e a política [...] são os dois pólos do eixo em torno do qual o
constitucionalismo democrático executa seu movimento de rotação
(BARROSO, 2009, p. 42).
Para que a Constituição mantenha a sua função de acoplamento estrutural
entre o sistema jurídico e político possibilitando influências recíprocas, nenhum dos
dois sistemas – leia-se as estruturas estatais formadoras desses sistemas – pode
sobrepor-se ao outro, sob pena de regredir para as antigas conformações estatais, mas de
maneira oposta, ou seja, o Judiciário seria hierarquicamente superior aos Poderes
Executivo e Legislativo, o que acabaria por afetar o acoplamento estrutural entre direito
e política, e, conseqüentemente, o Estado Democrático de Direito. |