dc.description.abstract | “Segundo a tradição, o criador do termo ‘filosofia’ foi Pitágoras, o que, embora não sendo historicamente seguro, no entanto é verossímil. O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha só ser possível aos deuses uma sofia (‘sabedoria’), ou seja, uma posse certa e total do verdadeiro, uma contínuaaproximação ao verdadeiro, um amor ao saber nunca saciado totalmente, de onde, justamente, o nome ‘filo-sofia’, ou seja, ‘amor pela sabedoria’” (REALE, 1994, p. 21). E, nas pistas da tradição grega, continuaremos aqui uma investigação sobre afilosofia mesma, naquela que Jaeger chama a “obra mais importante de Platão”(JAEGER, 2003, p. 760), “a grande obra prima, A República” (idem, idem, p. 601).Analisaremos assim o que é filosofia na obra máxima do filósofo que, com ele ou contraele, talvez seja o filósofo mais influente de toda a história da filosofia.Ainda é preciso observar que, segundo Pierre Hadot, “as palavras da famíliaphilosophia surgiram apenas no século V a.C. e o termo só foi definido filosoficamenteno século IV a.C. por Platão” (HADOT, 1999, p. 27). Assim, vamos encontrar noFedro: “A palavra sábio, Fedro, parece demasiadamente sublime. Ela convém somenteao divino; já a expressão amigo da sabedoria ou outra semelhante é mais adequada.”(PLATÃO, Fedro, 278 d).E na República Platão faz nítida distinção entre “amigos da opinião” e “amigosda sabedoria” (idem, Rep. 480 a). O “amigo da opinião”, para Platão, é aquele dasanálises superficiais ligadas à transitoriedade da matéria e à percepção pelos sentidos. Jáo filósofo é aquele que procura ver além dos sentidos, buscando o sentido real naquiloque as coisas são em si mesmas, ou seja, no seu aspecto verdadeiro, belo e justo em si.Assim como Platão apresenta o ser humano essencialmente como uma almadividida em suas partes, em seus aspectos diferenciados, a própria filosofia não deixariade se apresentar em sua obra em seus aspectos múltiplos, a saber, teológico, político,estético, ético, poético, todos esses aspectos inter-relacionados, mas também é precisoverificar como a filosofia se caracteriza com as possibilidades dessa coisa humana que éo pensar que se manifesta através de um discurso.A filosofia talvez seja o conjunto das tentativas máximas, em termos delinguagem, do ato de pensar sobre o próprio ato de pensar e de tudo o que afeta opensamento; e também o pensamento sobre tudo o que possa dar margem a pensar,dando aquela conexão convincente a esse próprio pensamento, o que chamaríamos deuma maneira racional de articular o pensamento. Essas idéias surgirem dessa formaporque em Platão, a filosofia não se dá somente pelo raciocínio dialético, o lógospropriamente dito assim racional. Para Platão, o mundo da inteligibilidade se dátambém por imagens, poderíamos dizer, pelo uso da imaginação. Pensar, então, édialeticar, dialogar, colocar o pensamento em combate, mas também deixá-lo fluir,imaginar. O discurso também se desdobra na produção de imagens.Dessa forma, a filosofia se dá também com aquilo com o que a mente é capaz devisualizar. Ela, a mente, produz cenas, porque também vivemos num mundo de cenas,ou seja, a filosofia está também dentro deste cenário, de um cenário, como um teatro ouum cinema. A filosofia em Platão se forma, como a sua obra, por personagens, diálogose lugares aonde acontecem as cenas; personagens que inventamos baseados na“realidade”. A “realidade” é, então, o que nos serve de base para alçarmos voos maisaltos.Platão elabora assim seus diálogos, colocando na boca de um filósofo que sechamava Sócrates talvez palavras que ele nunca teria sido capaz de ter dito: “Dizemque Sócrates, ouvindo Platão ler o Lísis, exclamou: ‘Por Heraclés! Quantas mentirasesse rapaz me faz dizer!’ Com efeito, Platão atribui a Sócrates não poucas afirmaçõesque este jamais fez.” (LAÉRTIOS, 1988, p. 93).Isso nos leva a pensar até que ponto, a partir de Platão, na filosofia de Platão,realidade e ficção não se confundem. Ou até mesmo até que ponto filosofia e ficção nãose confundem. A realidade suprema, a verdade, todos os conceitos que saem da obraplatônica não se aproximam, então, disso que chamamos de literatura, poesia? Sabemosque literatura não é, mas não podemos deixar de ver as aproximações da filosofia com aficção. A República, como os diálogos platônicos em geral, revela a aproximação dafilosofia com a poesia. “Atacando os poetas consagrados, Platão salva a poesia.Incorreto é ver abismos entre prosa e poesia, no exame da literatura platônica. Na escritade Platão, prosa e poesia confluem. Consideramos sinônimos fingimento, ficção epoesia. Poderíamos legitimamente proceder de outro modo?” (SCHÜLER, 2001, p.18).A ficção também não é uma possibilidade do pensamento, às alturas, além dasalturas? Não é também uma maneira de interpretar a realidade? E a filosofia tambémnão é uma maneira diferente da ficção, mas como ela, de interpretar a “realidade”? Equantas são as nossas possibilidades de interpretação diante do espetáculo de uma obraviva ou literária que se apresenta sobre nós?A “Filosofia” é antes, uma palavra, que se nos aparece, que apareceu na Grécia enos fez seus herdeiros. A palavra guarda um conceito e por isso mesmo nos escapa. Nósvamos assim no rastro dessa palavra na República e com ela nos achar e com ela nosperder, pois essa palavra carrega um sentido, melhor, vários sentidos. É que “todoconceito tem um contorno irregular, definido pela cifra dos seus componentes. É porisso que, de Platão a Bérgson, encontramos a idéia de que o conceito é questão dearticulação, corte e superposição.” (DELEUZE; GUATARRI, 1992, p. 27). Cortar,articular, superpor filosofia à própria filosofia para fazer aparecer e até desaparecercomo queria Platão com os conceitos dos sofistas: sobrepor um conceito sobre outro.Para Deleuze e Guatarri, “o filósofo inventa e pensa o conceito” (idem, idem, p.11). O “amor”, o “valor”, o “bem”, o “mal, o “conhecimento”, a “ciência”, por exemplo,são conceitos inventados. Os gregos, como bons filósofos, inventaram também oconceito de “amizade” e de “sabedoria”, e a partir deles, descontentes que eram,inventaram também o de “filosofia”. E como “não há conceito simples, (...) como eleuma multiplicidade (...) Todo conceito é ao menos duplo, ou triplo, etc.” (idem, idem, p.27), a filosofia também se duplica, triplica-se e multiplica-se conceitualmente. Essamultiplicidade nos leva a pensar na filosofia também como um fenômeno estético,artístico, teatral. Leva-nos também a uma outra pergunta: Qual é o jeito certo para sefazer filosofia? Existe o jeito correto de se fazer filosofia? A filosofia não é o lugar queexatamente ou inexatamente deve permitir o escape, o espanto, e que, ao mesmo tempo,deve se familiarizar com o desfamiliar, assim como habitante da caverna tem que sefamiliarizar com a luz que não conhecia?Pensemos somente na palavra que define, aquela mesma pela qual se dá asignificação as coisas: Lógos. Quantos significados podemos encontrar para isso que emgrego é “palavra, dito; revelação divina, resposta de um oráculo; máxima, sentença;exemplo; decisão, resolução, condição, promessas; pretexto; argumento; ordem;menção; notícia que corre; conversação; relato; matéria de estudo ou de conversação;razão, inteligência; senso comum; a razão de uma coisa; motivo; juízo, opinião; estima,valor que se dá a uma coisa; justificação; explicação; a razão divina” (ISIDRO, 1998, p.350)?Por quantos caminhos poderíamos ir atrás do lógos filosófico e por quantoscaminhos não podemos seguir? Começaríamos, assim, pela palavra, sua etimologia;passaríamos pelo oráculo e, quem sabe por ali não decifraremos uma revelação divina?Veríamos o que esse conceito de filosofia em Platão tem de “exemplo”, de “moral”, de“ético”; e quem sabe, ao final, nos sintamos mais inteligentes, mais iluminados, ouencontremos o motivo mesmo que nos leva a perseguir os conceitos, ou pelo menos, nossatisfaçamos com uma opinião, com uma opinião correta, ou melhor, com muitasopiniões. Ao final, esse texto não deixará de ter sido uma conversa, um diálogo: dopersonagem que lê com o personagem Platão; do personagem que escreve com elemesmo. | en |